Hillel (60 a.C. – 20 d.C.) foi um grande rabino judeu. Ele presidiu o Sinédrio (a mais alta corte judaica). Na época de Jesus, os ensinos de interpretação bíblica de Hillel eram amplamente estudados e aplicados pelos rabinos. Vejamos cada um deles.
1º Método
O primeiro método de interpretação de Hillel é o kal va’hômer, que significa Leve e pesado, e que em latim se conhece por a fortiori. Walter C. Kaiser Jr chama essa regra de inferência do sentido mais brando para o mais forte.[1]
Esse princípio parte da ideia de que, se algo é verdade para o menor, será para o maior. Um bom exemplo está em Mateus 6.30:
Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?
A expressão muito mais ou quanto mais, dependendo da versão ou tradução, é a chave do texto (às vezes pode estar implícito). Se Deus cuida das aves e dos lírios (menor), imagina o cuidado divino para o homem que deposita sua confiança no Eterno Criador (maior).
Outro exemplo está em Lucas 18.4-7:
E por algum tempo não quis atendê-la; mas depois disse consigo: Ainda que não temo a Deus, nem respeito os homens. Todavia, como esta viúva me molesta, hei de fazer-lhe justiça, para que enfim não volte, e me importune muito. E disse o Senhor: Ouvi o que diz o injusto juiz. E Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele de dia e de noite, ainda que tardio para com eles?
A persistência da viúva recebeu sua recompensa, quanto mais a oração perseverante dos escolhidos de Deus.
2ºMétodo
O segundo método de interpretação de Hillel é o g’zerah shavah. Significa analogia, silogismo.[2] Trazendo a ideia de um corte igual. É aplicar sentenças na mesma medida para casos semelhantes, ou seja, direitos iguais. O Talmude Babilônico define esse princípio como a aplicação, em um assunto, de uma regra já conhecida aplicada a outra situação, com base em uma expressão comum usada em conexão com ambas as situações nas Escrituras.[3]
Um exemplo desse método está em Mateus 12.1-4:
Naquele tempo passou Jesus pelas searas, em um sábado; e os seus discípulos, tendo fome, começaram a colher espigas, e a comer. E os fariseus, vendo isto, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer num sábado. Ele, porém, lhes disse: Não tendes lido o que fez Davi, quando teve fome, ele e os que com ele estavam? Como entrou na casa de Deus, e comeu os pães da proposição, que não lhe era lícito comer, nem aos que com ele estavam, mas só aos sacerdotes?
Os fariseus estavam irados com os discípulos de Jesus porque estavam colhendo e comendo espigas no dia de sábado, o sagrado dia. Jesus lembra aos líderes religiosos de um episódio semelhante que ocorreu com Davi e seus homens quando tiveram fome. Eles comeram do pão sagrado, do pão da proposição (1Sm 21.1-9). Eram doze os pães da proposição. Eram colocados em ordem aos sábados perante o SENHOR. Era oferta queimada ao Eterno. Pertenciam aos sacerdotes que os comiam no lugar santo (Lv 24.5-9).
As ações dos seguidores de Jesus estavam listadas entre as 39 regras proibitivas do shabat. William Barclay diz que, por terem arrancado o trigo, eram culpados de colher; por esfregá-lo entre as mãos, eram culpados de debulhar; por terem separado os grãos do caule, eram culpados de debulhar.[4]
Bem, se Davi e seus homens não foram condenados ao praticar tal ação, Jesus e seus discípulos também não poderiam sofrer condenação dos fariseus. Diante do fato posterior, deve-se aplicar as mesmas regras de um fato semelhante anterior. Aplica-se, neste caso, g’zerah shavah.
3º Método
O terceiro método de interpretação de Hillel é o binyan av mikatuv ehad. Significa escrever/construir uma “família” de um texto. Nessa regra, um texto pode servir de base para se construir um princípio geral, ou seja, uma consideração achada em um texto pode se aplicar por analogia a outros. O escritor aos Hebreus (Hb 9.11-22) se utiliza desse terceiro método para construir seu argumento sobre a salvação pelo sacrifício de Cristo. Utiliza a consideração sobre o “sangue” dos livros de Êxodo, Levítico e Números para falar da Nova Aliança (Jr 31.31) por meio do sangue de Cristo para remissão de pecados.
E Moisés tomou a metade do sangue, e a pôs em bacias; e a outra metade do sangue espargiu sobre o altar. E tomou o livro da aliança e o leu aos ouvidos do povo, e eles disseram: Tudo o que o Senhor tem falado faremos, e obedeceremos. Então tomou Moisés aquele sangue, e espargiu-o sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue da aliança que o Senhor tem feito convosco sobre todas estas palavras (Êx 24.6-8).
E o degolou; e Moisés tomou o sangue, e pôs dele com o seu dedo sobre as pontas do altar em redor, e purificou o altar; depois derramou o restante do sangue à base do altar, e o santificou, para fazer expiação por ele. Depois tomou toda a gordura que está na fressura, e o redenho do fígado, e os dois rins e a sua gordura; e Moisés queimou-os sobre o altar. Mas o novilho com o seu couro, e a sua carne, e o seu esterco, queimou com fogo fora do arraial, como o Senhor ordenara a Moisés. Depois fez chegar o carneiro do holocausto; e Arão e seus filhos puseram as suas mãos sobre a cabeça do carneiro; e degolou-o; e Moisés espargiu o sangue sobre o altar em redor (Lv 8.15-19).
E Eleazar, o sacerdote, tomará do seu sangue com o seu dedo, e dele espargirá para a frente da tenda da congregação sete vezes (Nm 19.4).
Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei uma aliança nova com a casa de Israel e com a casa de Judá (Jr 31.31).
Citados os textos do Antigo Testamento, veja a construção do pensamento do autor aos Hebreus utilizando as palavras principais de cada texto que se conectam perfeitamente.
Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção. Porque, se o sangue dos touros e bodes, e a cinza de uma novilha esparzida sobre os imundos, os santifica, quanto à purificação da carne, quanto mais[5] o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para servirdes ao Deus vivo? E por isso é Mediador de um novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam a promessa da herança eterna. Porque onde há testamento, é necessário que intervenha a morte do testador. Porque um testamento tem força onde houve morte; ou terá ele algum valor enquanto o testador vive? Por isso também o primeiro não foi consagrado sem sangue; porque, havendo Moisés anunciado a todo o povo todos os mandamentos segundo a lei, tomou o sangue dos bezerros e dos bodes, com água, lã purpúrea e hissopo, e aspergiu tanto o mesmo livro como todo o povo, dizendo: Este é o sangue do testamento que Deus vos tem mandado. E semelhantemente aspergiu com sangue o tabernáculo e todos os vasos do ministério. E quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão (Hb 9.11-22).
Shulam afirma que o significado real desse princípio é quando uma ideia é encontrada em várias passagens diferentes, podendo tirar conclusões a partir do efeito cumulativo de se colocá-las juntas.[6] Partindo do específico para o geral, a palavra ou a frase que conecta a “família” de textos deve ser a principal ideia em todos os versículos.[7] Isso evita que o leitor-intérprete cometa sérios erros de interpretação bíblica, pois ele deve se ater ao tema principal, que permite a interligação dos textos, formando, assim, uma família, a construção de um pensamento.
Nesse sentido, Walter C. Kaiser Jr. ainda nos dá o exemplo do caso do assassinato não intencional de um companheiro lenhador que é citado em Deuteronômio 19 que pode ser aplicado a qualquer tipo de morte acidental resultante de dois homens trabalhando juntos em um lugar público.[8]
4º Método
O quarto método de interpretação de Hillel é o binyan av mishnei ketuvim, que significa compor/construir uma “família” de dois ou mais textos. Um princípio é considerado pela relação de dois ou mais versículos, ou seja, na combinação de dois ou mais textos se estabelece um princípio geral. Este princípio é semelhante ao anterior, a diferença é que a aplicação vem da combinação de dois textos diferentes, utilizando os conceitos de ambos a uma família de outras passagens.[9]
O autor aos Hebreus também se utiliza desse método para falar da superioridade de Cristo. Utilizando o texto do Segundo Livro de Samuel e de Salmos, ele construiu o argumento geral.
Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; e, se vier a transgredir, castigá-lo-ei com vara de homens, e com açoites de filhos de homens (2Sm 7.14).
Proclamarei o decreto: o Senhor me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei (Sl 2.7).
Porque, a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei por Pai, e ele me será por Filho? (Hb 1.5).
É perceptível que os contextos dos textos são distintos, mas, guiados pelo Espírito de Deus e se utilizando dessa quarta regra de Hillel, os autores bíblicos, principalmente do Novo Testamento, construíram fortes princípios sobre Cristo e seu ministério.
5º Método
O quinto método de interpretação de Hillel é o k’lal uf’rat, que traz a ideia do geral para o particular ou específico. Nesse método, um princípio geral e importante é estabelecido, sendo ampliado e especificado. Um ótimo exemplo está em 2Co 6.14-17.
O princípio geral é a frase “não vos ponhais em jugo desigual”, e dele, Paulo parte para as especificações: Cristo com Maligno, o crente com incrédulo, santuário de Deus com ídolos. A regra também pode funcionar de forma inversa: do específico para o geral, chamado de frat uk’lal.
6º Método
O sexto método de interpretação de Hillel é o kaiotze bo mimakom aher. Os estudiosos traduzem como analogia feita de outra passagem ou explicação de outra passagem. Esse método é uma analogia. Walter C. Kaiser Jr afirma que esse método explica uma passagem apelando para outro trecho das Escrituras.[10]
O rabi Hillel foi indagado com a seguinte questão: o cordeiro da Páscoa deveria ser abatido no sábado se o décimo quarto dia de Nisan fosse um sábado? Ele respondeu que, tendo em vista que Números 28.10 decreta que os “sacrifícios diários” deveriam ser oferecidos também aos sábados, então por analogia o cordeiro da Páscoa deveria ser abatido no décimo quarto dia de Nisan, independentemente do dia da semana em que caísse.[11]
Joseph Shulam diz que neste princípio o expositor compara duas passagens que parecem contradizer uma à outra com uma terceira passagem que contém algumas das mesmas ideias gerais para resolver as contradições aparentes.[12]
No texto de 1Pe 2.4-8, esse método foi utilizado por Pedro para resolver a questão da aceitação e da rejeição da pedra angular. Ele faz menção de Is 28.16: “… pedra já provada, pedra preciosa, angular, solidamente assentada…”; e do Sl 118.22: “… pedra rejeitada, que veio a ser a principal pedra, angular”. E para harmonizar as ideias, insere Is 8.13-15. Segue-se o texto:
E, chegando-vos para ele, pedra viva, reprovada, na verdade, pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa, vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo. Por isso também na Escritura se contém: Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido. E assim para vós, os que credes, é preciosa, mas, para os rebeldes, a pedra que os edificadores reprovaram, essa foi a principal da esquina, e uma pedra de tropeço e rocha de escândalo (Is 8.14), para aqueles que tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que também foram destinados.
7º Método
O sétimo método de interpretação de Hillel é o davar ha-nilmad me-inyano, que significa explicação obtida do texto – em outras palavras, aplicação de uma inferência evidente por si só em um texto. Um texto bíblico não pode ser estudado de forma isolada, deve ser cuidadosamente examinado dentro do seu contexto. Esse é o princípio mais importante. Joseph Shulam diz que o contexto original é a principal ferramenta para a compreensão das questões e dos princípios que o autor pretendia que nós compreendêssemos, e, se ignoramos o contexto, deixamos a Palavra de Deus sem nenhum aval, uma vez que ela poderia ser usada para dizer e justificar qualquer coisa, podendo ser distorcida naquilo que quisermos.[13]
Portanto, esses são os sete princípios de interpretação de Hillel. No segundo século da era Cristã, Ishmael Ben Elisha ampliou as regras de Hillel para treze; mais tarde, Eliezar Ben José aumentou para trinta e duas.
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REFERÊNCIAS
[1] KAISER, Walter C. Introdução à Hermenêutica Bíblica, p. 205.
[2] BEREZIN, Jaffa Rifka. Dicionário Hebraico Português, p. 71.
[3] O Talmude Babilônico: Glossário. Ed 1. Epstein. Index Volume. London: Socino Press, 1952, p. 734 apud SHULAM, Joseph. Tesouros Escondidos, p. 60.
[4] BARBLAY, William. O Evangelho de Mateus [em pdf], p.453.
[5] A expressão quanto mais nos remete ao primeiro princípio interpretativo de Hillel. Se algo é verdade para o menor, será para o maior.
[6] SHULAM, Joseph. Tesouros Ocultos, p. 61.
[7] Idem, pág. 62.
[8] KAISER, Walter C. Introdução à Hermenêutica Bíblica, p. 205-206.
[9] SHULAM, Joseph. Tesouros Ocultos, p. 64.
[10] KAISER, Walter C. Introdução à Hermenêutica Bíblica, p. 206.
[11] KAISER, Walter C. Introdução à Hermenêutica Bíblica, p. 206.
[12] SHULAM, Joseph. Tesouros Ocultos, p. 67.
[13] SHULAM, Joseph. Tesouros Ocultos, p. 70.