No período da patrística, ocorreu uma preferência pela interpretação alegórica. Dentre alguns destacados intérpretes dessa época, podemos indicar:
Clemente de Alexandria
Clemente de Alexandria é considerado um dos grandes polemistas (teólogos do século II e III que combateram de forma incisiva as heresias, escrevendo muito material sobre os temas eclesiásticos que estavam sofrendo com as deturpações teológicas e as falsas doutrinas).
Clemente de Alexandria nasceu em Atenas por volta de 150 e morreu em aproximadamente 215 d.C. Recebeu uma sólida formação filosófica e literária. Chegou em Alexandria por volta de 180 d.C. Discípulo de Panteno, também fundou a didascália cristã. Iniciou um sistema científico para combater as heresias dos gnósticos.
Para Clemente, em Deus se encontra toda a verdade, mas isso não poderia ser aprendido através de métodos científicos, pois Deus não é matéria, Deus se manifesta e se dá a conhecer pela Sua graça e pela Sua Palavra. A trilogia de Clemente se baseia em seus escritos: Exortações aos Gentios, O Pedagogo e Tapeçarias.
Ele acreditava que as Escrituras escondiam seu verdadeiro significado. O intérprete precisava mergulhar no texto, analisar o texto de forma mais profunda. Para ele, o texto possuía os sentidos histórico, doutrinal, profético, filosófico e místico.
Virkler nos mostra como Clemente de Alexandria interpretou Gênesis 22.1-4:
Quando, no terceiro dia, Abraão chegou ao lugar que deus lhe havia indicado, erguendo os olhos, viu o lugar a distância. O primeiro dia é aquele constituído pela visão de coisas boas; o segundo é o melhor desejo da alma; no terceiro a mente percebe coisas espirituais, sendo os olhos do entendimento abertos pelo Mestre que ressuscitou no terceiro dia. Os três dias podem ser o mistério do selo (batismo) no qual cremos realmente em Deus. É, por consequência, a distância que ele percebe o lugar. Porque o reino de Deus é difícil de atingir, o qual Platão chama de reino de ideias, havendo aprendido de Moisés que se tratava de um lugar que continha todas as coisas universalmente. Mas Abraão corretamente o vê a distância, em virtude de estar ele nos domínios da geração, e ele é imediatamente iniciado pelo anjo. Por esse motivo diz o apóstolo: “Porque agora vemos como em espelho, obscuramente, então veremos face a face”, mediante aquelas exclusivas aplicações puras e incorpóreas do intelecto.[1]
Orígenes
Orígenes, embora não duvidando de que o texto sagrado seja invariavelmente verdadeiro, insiste na necessidade da sua correta interpretação. Assim, teve a suficiente percepção para distinguir três níveis de leitura das escrituras:
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- o Literal,
- o Moral
- e o Espiritual – este é o mais importante e também o mais difícil.
Segundo Orígenes, cada um desses níveis indica um estado de consciência e de amadurecimento espiritual e psicológico. Em primeiro lugar, ele leu a Bíblia com a intenção de verificar do melhor modo o seu texto e de oferecer a edição mais fidedigna. Este, por exemplo, é o primeiro passo: conhecer realmente o que está escrito e conhecer o que essa escritura pretendia intencional e inicialmente dizer – conhecer exatamente o que está escrito, o texto como tal.
Além do sentido “literal”, que esconde profundidades que não se veem num primeiro momento, a segunda dimensão é o sentido “moral”: o que devemos fazer vivendo a palavra; e, por fim, o sentido “espiritual”, isto é, a unidade da Escritura, que, em todo o seu desenvolvimento, fala de Cristo. É o Espírito Santo que nos faz compreender o conteúdo cristológico, e, consequentemente, a unidade da Escritura na sua diversidade.[3]
Ele cria ser a Escritura uma vasta alegoria na qual cada detalhe é simbólico, baseado em 1Co 2.6-7. Como o homem, a Escritura possui três partes:
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- corpo (sentido literal: na prática, esse sentido foi praticamente desprezado por Orígenes),
- alma (sentido moral: usou pouco esse método)
- e espírito (sentido alegórico ou místico: para ele, esse método traria o verdadeiro conhecimento e verdade do texto).[4]
Agostinho
Agostinho foi um grande gênio teológico de sua época. Desenvolveu diversas regras para a prática da exposição das Escrituras. Agostinho nasceu em aproximadamente 354 na cidade de Tagaste de Numídia, norte africano. Pela grande erudição, ficou conhecido como teólogo e filósofo de Hipona.
Identificamos Agostinho como um dos teólogos científicos que viveram durante o IV e o V séculos da Era Cristã. Utilizaram métodos e técnicas científico-racionais para a coerência da interpretação bíblica. É importante tanto para os católicos (na doutrina da Igreja) como para protestantes (na doutrina da graça). Combateu fortemente a heresia maniqueísta, a qual noutro tempo foi adepto; combateu também o Donatismo e o Pelagianismo. Produziu grandes obras, como Confissões e Cidade de Deus.
Também deixou um vasto material de comentários bíblicos, cartas, tratados, sermões etc. Bernard Ramm faz um resumo das regras sobre interpretação bíblica estabelecidas por Agostinho de Hipona:
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- o intérprete deve ser um cristão autêntico;
- deve possuir em alta conta o significado literal e histórico da Escritura;
- a Escritura tem mais que um significado, e, portanto, o método alegórico é adequado;
- há significado nos números bíblicos;
- o Antigo Testamento é documento Cristão porque Cristo está retratado nele do princípio ao fim;
- compete ao expositor entender o que o autor pretendia dizer, e não introduzir no texto o significado que ele, expositor, quer lhe dar;
- o intérprete deve consultar o verdadeiro credo ortodoxo;
- um versículo deve ser estudado em seu contexto, e não isolado dos versículos que o cercam;
- se o significado de um texto é obscuro, nada na passagem pode constituir-se matéria de fé ortodoxa;
- o Espírito Santo não toma o lugar do aprendizado necessário para se entender a Escritura. O intérprete deve conhecer hebraico, grego, geografia e outros assuntos;
- a passagem obscura deve dar preferência à passagem clara;
- o expositor deve levar em consideração que a revelação é progressiva.[5]
A grande crítica que se faz a Agostinho é o fato de que, na sua prática interpretativa, ele mesmo tenha deixado de observar muitos dos seus princípios, esvaindo-se para uma interpretação mais alegórica, justificando isso com base em 2Co 3.6, quando se diz que a letra mata, mas o espírito vivifica. A letra aqui, para Agostinho, seria a interpretação literal do texto, e somente uma interpretação alegórica e espiritual daria a vida. Para ele, existia no texto um sentido quádruplo: histórico, etiológico, analógico e alegórico.
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REFERÊNCIAS
[1]VIRKLER, Henry A. Hermenêutica. Princípios e Processos de Interpretação Bíblica, p. 44.
[2]MCGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução a teologia cristã, p. 45.
[3]MARTINS, Jaziel. Os Polemistas. Apostila. FABAPAR.
[4]VIRKLER, Henry A. Hermenêutica. Princípios e Processos de Interpretação Bíblica, p. 44.
[5]RAMM, Bernard. Apud VIRKLER, Henry A. Hermenêutica. Princípios e Processos de Interpretação Bíblica, p. 45.