“E, havendo-o escarnecido, despiram-lhe a púrpura, e o vestiram com as suas próprias vestes; e o levaram para fora a fim de o crucificarem.
E constrangeram um certo Simão, cireneu, pai de Alexandre e de Rufo, que por ali passava, vindo do campo, a que levasse a cruz.
E levaram-no ao lugar do Gólgota, que se traduz por lugar da Caveira. ”
(Marcos 15.20-22)
Em um dado momento da caminhada de Jesus, relata-se que ele começou seguidamente a alertar seus discípulos que era necessário que o ‘Filho do Homem’ padecesse muitas coisas dos anciãos, principais dos sacerdotes e mestres da lei, e que, rejeitado pelos seus, fosse morto e ressurgisse. A princípio, eles não compreenderam o sentido daquelas palavras, e temiam questioná-lo a respeito.
Quem seria aquele ‘Filho do Homem’ ?
Deslumbrados pela presença fascinante e gloriosa do Mestre, quem alguns declaravam ser o próprio Messias prometido — o que iria libertar o povo do domínio romano e estabelecer um reinado triunfante em Israel — era inconcebível a ideia de um Salvador que viesse a padecer pela nação.
Certo dia, após novamente admoestá-los sobre os futuros sofrimentos do Filho do Homem, o Mestre disse:
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me.
Porque, qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas qualquer que, por amor de mim, perder a sua vida, a salvará.
Porque, que aproveita ao homem ganhar o mundo todo, perdendo-se ou prejudicando-se a si mesmo? ” (Lucas 9.23-25)
A palavra ‘cruz’ aqui parece ter sido estrategicamente colocada por Jesus.
O império romano aperfeiçoou dos gregos, fenícios e outros povos o uso da cruz como instrumento de tortura. Era uma punição pública, prolongada e vexatória aplicada a traidores e inimigos de Estado, considerada por muitos a mais cruel das mortes.
De todas as formas, simbolizava vergonha e horror.
Naquele momento, quem dos discípulos imaginaria que para ela também caminhava o Mestre Amado?
Ele parecia desde o princípio saber seu destino: a cruz.
Em verdade vos digo,
Aquele que não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus.
Aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus.
Como renascer já tendo nascido?
* * *
Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a causar danos a si mesmo?
As palavras do Mestre alertam que o andar segundo o próprio coração, embora possa trazer recompensas imediatas e vantajosas, leva à perdição em si mesmo.
Porém, como entender esta verdade se assumimos que nosso proceder e escolher são, dentro das nossas possibilidades, satisfatórios e perfeitos?
Os sábios parecem compreender que, quanto mais se aprende, mais entende-se que nada se sabe; que aprender a ouvir é mais nobre que saber falar. Que as melhores decisões demandam experiência, conselhos, visão mais apurada e ampliada.
Sem humildade é impossível reconhecer nossos erros.
É também impossível aprender, impossível crescer.
Parece haver tantas variáveis que conspiram contra nossa perfeição. Orgulho, egoísmo, arrogância, …
De fato, nosso próprio corpo parece conspirar contra nós.
Já nascemos envelhecendo.
Realmente estamos em posição de escolher o melhor?
E as inúmeras vezes que seguimos intencionalmente caminho faltoso e ainda sentimos prazer nele?
‘Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo.’
No Gênesis relata-se que toda a raça humana descende de um só casal, que, no princípio, habitava um lugar especial onde o próprio Criador os visitava. Conta-se também que um dia eles deliberadamente decidiram avançar contra a ordenança de Deus e receber um fruto que ainda não estavam aptos para digerir.. Como consequência, confusos, com medo e vergonha, não puderam mais permanecer diante do Criador. Era necessário assumirem as responsabilidades pelos seus atos.
Foi ali também que toda a humanidade morreu..
Qual maior morte do que a separação daquele de quem fomos feitos imagem e semelhança?
Ali fomos o filho que, antes do tempo, demanda ao Pai sua herança para dizimá-la em prazeres transitórios.
Ali também passamos a morrer lentamente.
Provamos em toda nossa história o veneno de termos acessado um conhecimento para o qual não estávamos ainda preparados.
Quantas guerras, quanta destruição..
E continuamos a guerrear, a destruir, a matar, e a morrer.
De fato, todos nós andávamos desgarrados, como ovelhas.
Cada um se desviava pelo seu caminho,
MAS DEUS…,
por eternamente desejar que estejamos perto dEle,
pelo grande amor com que nos amou,
e por nos haver amado primeiro,
nos preparou, desde tempos imemoriais, um novo e único caminho de resgate, que nos leva novamente à vida eterna e à plenitude.
Ninguém pode nascer de novo sem negar-se a si mesmo, sem morrer para aquilo que, mesmo precioso e prazeroso aos olhos, ao fim, nos fere e afasta do Criador.
Sobre Jesus, o profeta de Nazaré, o Pai então fez cair a iniquidade de nós todos.
Verdadeiramente ele escolheu assumir o peso das nossas inconsequências.
Ele tomou sobre si as nossas dores.
Ele decidiu quitar nossa dívida impagável.
Nele se revela a justiça de Deus, para todos e sobre todos os que creem, pois todos pecaram e destituídos estão da Sua glória.
Ele nos chamou de amigos e nos mostrou perfeito Amor,
posto que não há amor maior do que este: de alguém dar a sua vida pelos seus próprios amigos.
Assim, ele foi ferido por causa das nossas transgressões, moído por causa das nossas iniquidades.
Ali estava então Jesus, o justo, como um cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, tomando a vergonhosa cruz da humanidade.
O odre estava sendo quebrado, o unguento suave, o vinho novo sendo derramado sobre a Terra para a reconciliação dos homens com Deus.
* * *
Então, naquele exato momento passava por ali Simão, vindo do campo, possivelmente para a grande festa da Páscoa, a rememoração da libertação dos israelitas da opressão egípcia.
Porém, de todas as formas que buscasse, mesmo por sacrifícios, como poderia ser ele liberto do cativeiro do peso da consciência?
Que poder apagaria a culpa de erros cometidos?
Subitamente ele se vê no meio de um tumulto..
Era um grupo de soldados seguido por uma multidão, e um homem que carregava sua cruz, tão humilhado, ferido, que seguia para cumprir sua missão eterna, seu doloroso martírio. Naquele momento, tomado por dores angustiantes, seus mais próximos já haviam o deixado.
A tropa romana, talvez vendo que homem tão íntegro e de nobre trato não conseguiria completar toda aquela tragédia, constrangeram o cireneu a ajudá-lo.
Ali então estava Simão, inesperadamente, carregando com Cristo sua cruz, seguindo para o mesmo lugar onde o Mestre haveria de ser crucificado.
O impetuoso Vento de Deus convergia irresistivelmente para lá …
Naquela altura, todas as veredas pareciam levar Simão à cruz.
Como o caminho das dores do parto, que precede a chegada da vida ..
O grão de trigo que só frutifica se, caindo na terra, morrer.
É quando o Criador nos constrange em nossa própria história a entender que nenhum homem além do Filho tem as palavras de vida eterna, e que sem ele não mais temos para onde ir..
É onde reconhecemos e compreendemos com o coração que todo dom perfeito dos céus para nós vem somente pela graça de Deus, não por méritos ou obras.
Da cruz de Cristo brota a água viva, que limpa e eleva à nova e verdadeira identidade — a de filhos, nascidos de Deus sob uma nova aliança, testificada pelo sangue mais precioso e valioso da humanidade, que ali se derramou e espalhou..
Os que em sua morte foram também crucificados, já não vivem mais para si mesmos, mas, na Sua ressurreição, vivem agora por Ele, aquele que por eles morreu e ressuscitou.
Eduardo W. / Sobre o Reino.
Imagem – ‘Via Crucis’. E. Costantini.